domingo, 15 de novembro de 2015

Santana de Néri - População amazonense - 1884


POPULAÇÃO AMAZONENSE - 1884

Um pouco da vida doméstica e social da população amazonense, na visão do barão de Santana Néri,  extraído de “O País das Amazonas”, edição original de 1884.

[Barão de Santana Néri,  O País das Amazonas, cap. III]

O caráter e o temperamento de um povo qualquer não se traduzem apenas por suas instituições civis e políticas, por sua organização administrativa, por sua legislação particular; aparecem sobretudo num conjunto de fatos exteriores que lhe emprestem sua verdadeira fisionomia. A literatura e as artes dão a conhecer o grau de cultura de uma nação; sua vida doméstica revela, por um aspecto mais íntimo, suas tradições, costumes e tendências. 

Antes de estudarmos a vida intelectual da população amazonense, é sob este novo aspecto que vamos considerá-la.

Dos três grupos que compõem a população do Amazonas, ocupar-nos-emos apenas dos dois primeiros, isto é, dos brasileiros propriamente ditos e dos índios semicivilizados. Reservaremos o terceiro, que compreende os estrangeiros de todos os países estabelecidos no estado, para dele fazer o assunto especial de um capítulo da última parte deste trabalho.

Nas escolas da Europa, e até nas academias de melhor renome, conhecem-se melhor os gregos e os romanos de há dois mil anos que os atuais habitantes das regiões pouco distantes de Paris, de Londres ou de Berlim…

Quantas vezes nos foi perguntado, durante nossa longa estada na Europa, em colégios e universidades que frequentamos, se dormíamos ao ar livre, se tirávamos a água da fonte em crânio de mortos, e se nossas roupas eram feitas com plumas de pássaros azuis! Infelizmente, tivemos que responder a essas ingênuas perguntas, que nos tínhamos deixado contagiar pela prosaica civilização européia; que trocamos o arco secular pela carabina Minier; que introduzimos o conforto em nosso meio selvagem, e que as cidades, as aldeias e os simples povoados de nosso Amazonas substituíram vantajosamente as cabanas de folhas ou de terra batida que os europeus gostam de se representar em seus sonhos de Robinsons suíços.

Nossos centros de população, embora muito espalhados ao longo dos rios, fazem bela figura na orla das florestas virgens, entre o azul intenso do céu e as águas douradas dos rios, no meio de ilhas resplandecentes de verdura e de luz, e redundantes de fertilidade.


As pequenas cidades amazonenses são como ninhos sob as grandes árvores, ninhos espaçosos, onde tudo cabe com facilidade.

Lá, nesta bela região, as casas são vastas. Podem conter numerosas crianças, que as enchem com sua algazarra. As casas são vastas porque a terra é grande e a hospitalidade larga. As casas são vastas porque o amazonense gosta de se mover em liberdade. Ele não compreende essas colméias humanas de Paris onde zumbimos nossa existência, emurados, empilhados uns sobre os outros como num mausoléu de família. Ele não poderia limitar sua existência a alguns metros quadrados – angulus ridet.

Sua casa é relativamente espaçosa; é formada de apenas alguns compartimentos, onde caberiam apartamentos de Paris. Para construí-la, faz-se uma larga brecha em um canto de floresta; e com troncos de árvores gigantes, são erguidas paredes quase tão sólidas, embora muito menos elegantes, que os muros de tijolos, pedras e cimento habitualmente encontrados na Europa. Uma camada de cal as recobre e reflete os raios do sol. Varandas ornam a maior parte das casas, que aliás, são geralmente baixas e de um só andar. É raro que não haja um jardim, por pequeno que seja. O jardim interior, o quintal, e a varanda são os dois oásis onde se descansa nas horas quentes do dia, onde se conversa ao embalo das redes ou das cadeiras de balanço.

Além disso, se bem que essas casas do interior (já que em Manaus são encontradas casas bem construídas, chalés pitorescos e edifícios de variados andares) não possam rivalizar de modo nenhum com as construções modernas das primeiras capitais do Velho Mundo, elas oferecem outras vantagens: embora modestas e simples de aparência, elas estão sempre abertas – não no sentido figurado – como a casa do Sábio, e qualquer pessoa que traga uma carta de recomendação, da parte de um amigo ou de um simples conhecido, é acolhido de braços abertos. A hospitalidade escocesa é um mito ao lado da hospitalidade brasileira em geral. Quando um estrangeiro passa pelo umbral de uma casa, está em sua própria casa. Esses costumes patriarcais se encontram principalmente em vigor nessas paragens, onde não se encontram, principalmente nas cidades pequenas e nas aldeias, nenhuma hospedaria aceitável para viajantes habituados ao conforto europeu.

Mesmo nas casas ricas, não se encontra nenhum luxo de mobiliário, nenhuma suntuosidade aparente, nenhuma exibição de objetos que constituem a delícia das civilizações refinadas.

O estrangeiro é surpreendido pela simplicidade dos móveis. São algumas cadeiras de balanço leves, de equilíbrio instável, de movimento contínuo que enganam a necessidade energética do corpo por meio de uma indolência rítmica; cadeiras e canapés guarnecidos de palhinha e a infalível rede, ora simples, ora ornada de franjas de valor, escondida a um canto da alcova.

Quanto à roupa, o habitante do Amazonas se acredita obrigado à se submeter aos cortes das vestimentas europeias. O pano escuro é de rigor, bem como o chapéu de seda, usos absurdos em clima semelhante. As senhoras se mostram mais práticas e se vestem geralmente de fazendas leves, se bem que conservando sempre um certo toque parisiense. As roupas de tecido leve de algodão, seda e musselina são usadas pelas pessoas da sociedade.
Se os habitantes do alto Amazonas obedecessem menos aos preconceitos da moda e seguissem um pouco mais as simples indicações da higiene, só se vestiriam de flanela ou tecidos de seda, e usariam o capacete usado pelos ingleses nas Índias.

(FREDERICO JOSÉ DE SANTANA NÉRI, nasceu em Belém, Pará, em 1848 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1901. Escritor brasileiro. Fixou-se em Paris, onde se tornou o primeiro correspondente da  publicação République Française, e um dos fundadores da Associação Literária Internacional.)

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