domingo, 15 de novembro de 2015

Luiz Edmundo - Recordações do Rio antigo


O RIO DO MEADO DO SÉCULO XIX

Vista do mar a cidade apresenta o atrevido esplendor de cem anos atrás. A mesma natureza exuberante e teatral. Toda uma flora desenvolta e ativa, rica de viço e cor, galhuda, desordenada, impetuosa, revestindo de troncos de folhagens, vales, picos, planuras, nas montanhas em torno. São gussais, são coqueiros, são muricis, suinhães, sapucaias, ingás, guaripurus, ipês...

O quadro da paisagem portentosa ainda é, como se vê, o mesmo, nada tendo perdido em sua espetacular grandiosidade. Ainda estarrece, encanta e empolga o viajante chegado de outras plagas e outros climas.

Espremida entre os montes do Castelo e São Bento, tendo por fundo a serrania azul que sobe para o céu e vai perder-se além, vê-se a massa pesada, a massa escura e triste dos telhados do centro da cidade, cobrindo um casario acaliçado e baixo, beirando a linha branca e irregular das praias e as pedras alinhadas de um encardido e esverdinhado cais.

O Rio de Janeiro desenvolveu-se enormemente depois de proclamada a independência. O viajante que chega e mal transpõe a garganta da barra, começa, logo, a ver bairros como os de Botafogo, Catete e Glória, que a uns bons anos atrás eram, apenas, espessos tufos de folhagem mas que ora já mostram construções de certo porte e de aceitável feitio. Por toda a linha sinuosa do litoral há um trânsito vivo e numeroso: negros escravos a conduzir carros de bois, argueiros transportadores de hortaliça e, de quando em quando, em corrida veloz uma sege-tílburi, caleches, cabs, berlindas; toda uma nova cidade que se desenterra de um passado de muito esterquilínio e pouquíssima glória.

O movimento pelo mar, outrossim, é bem grande. Chegam proas de todos os recantos do universo. Naus francesas, alemães, inglesas, espanholas, italianas, portuguesas... Carga que embarca, carga que desembarca.

No fundeadouro dos navios mercantes, em confusão festiva, velas que ora se fecham ora se desfraldam. O número de barcos a vapor é notável. Em 1850 possuímos várias empresas de transporte, todas a vapor. É a Companhia dos Paquetes Britânicos, com casa de expediente no Cais Pharoux e que garante viagens de longo curso para a Europa. Uma passagem, do Rio de Janeiro para Falmouth, na Inglaterra, custa entre 30 a 57 libras esterlinas. Do Rio a Buenos Aires cobram-se, geralmente, de 12 a 20. "Os passageiros devem trazer colchão, roupa de cama, sendo que a bagagem não pode exceder de quatrocentas libras." Isso dizem os anúncios da referida empresa. Possuímos a nova Companhia Brasileira de Paquetes a Vapor, com um escritório à rua Direita, e uma frota bem nova, de excelentes navios que vão até Belém, no norte do país, e a Porto Alegre, para as bandas do sul; a Companhia de Navegação para Macaé e Campos, e, ainda, a Companhia Itaguaiense que possui barcos, todos eles a vapor. Fazem o serviço para Angra dos Reis, Mangaratiba e Parati. 


Mais duas companhias, a Itaboense e a Inhomirim, completam o serviço de cabotagem. Inúmeras embarcações pequenas estão mantendo o tráfego entre esta cidade, Niterói e ilhas da Guanabara. É o tempo das faluas de largas velas, de alta mastreação, das canoas pintadas de amarelo, dos botes e escaleres que se movem a remo, tripulados por negros, numa quantidade prodigiosa, de um lado para outro. O serviço de barcas para a Praia Grande e São Domingos já funciona, bem como o que faz a rota de Botafogo, com embarcações que saem do cais do Paço. Para São Cristóvão há um outro serviço, mas, de escaleres, partindo da Prainha, regularmente, de meia em meia hora. Todas essas proas agitadas e ativas dão grande vida à Guanabara na parte que medeia entre Governador e Pão de Açúcar. A impressão que assalta o forasteiro aqui chegado é a de surpresa por um tão movimentado tráfego. Dir-se-ia um grande porto europeu, uma grande cidade. Em todo caso, já é o porto maior e mais povoado da América do Sul, o empório comercial mais importante destas bandas do Atlântico. Buenos Aires ainda não tem a importância que, dentro de cinqüenta anos, terá.

Se compararmos o comércio que então mantemos com o dos tempos amorrinhados da colônia, uns quarenta anos atrás, veremos que aquele, espantosamente, triplicou. De resto, o desenvolvimento da terra autônoma processa-se com rapidez extraordinária, aos saltos. Passada a fase de agitações políticas, dos motins políticos, dos distúrbios, por vezes, graves, atentando, não raro, até, contra a unidade do país; consolidado o trono, acomodados os partidos, num ambiente de agradável concórdia, vamos colhendo os frutos de uma vida de trabalho e de paz. Os inimigos irreconciliáveis do progresso, velhos, na terra, como as recordações da governança de Luís Vahia, o Onça, ou mandão mais antigo, já se vão conformando com as "grandes novidades" que aqui chegam, embora um tanto de nariz torcido e aceitando a introdução constante de coisas proveitosas que dia a dia entram no país. E é assim que aceitam o gás de iluminação (no conceito de certo conselheiro municipal embuste consumado, uma vez que não se pode acreditar em luz não fornecida por pavio...) Somos o segundo país do mundo a assimilar o selo do Correio, de invenção inglesa; o terceiro país a inaugurar o caminho de ferro; dos primeiros a adotar a navegação a vapor, o telégrafo. A criação de uma junta de Higiene para zelar pela saúde pública é coisa que espanta aos médicos da Europa que aqui aportam, por acaso. Para alguma coisa havia de servir a independência da terra.

Possuímos uma arte que já se desapega da maminha lusa. Na literatura, José de Alencar e Gonçalves Dias são dois traços distintos de brasilidade. Dois gênios da pintura já palpitam para a glória do país: Vítor Meireles e Pedro Américo. Na escultura, Chaves Pinheiro é um mestre. Na música esplende o gênio musical de Francisco Manuel. E nem nos falta um grande ator, que é João Caetano, dos maiores que tivemos, até hoje. Possuímos um teatro oficial como incitamento à cultura da massa popular. E outros melhoramentos vão chegando, sendo, aqui, logo, introduzidos, antes mesmo de serem conhecidos ou acreditados em alguns países europeus. É o Grande Paralítico que se ergue, com surpresa de todos, e que se põe a caminhar.

O orçamento geral equilibra-se. A receita vai nesta consoladora progressão.
Isso se obtém sem a criação de impostos novos, por um gostoso tempo em que ainda não se conhece a matemática fictícia dos empreiteiros de finanças.

A nossa vida é boa, fácil, calma. É verdade que, em certa altura, o progresso que fruímos como que emperra, um pouco. Quem lê, porém, a fala imperial do trono de 1854 compreenderá, imediatamente, as razões capitais do inesperado emperramento. São os sucessos da Europa, da velha e turbulenta Europa, que aqui nos chegam perturbando o caminho de paz que então trilhamos.

Contudo, temos bom nome em toda parte. E, sobretudo, crédito. Comentário de um homem que nos visitou por essa época (Charles Reybeaud) e que, sobre o Brasil, escreveu impressões que, por certo, ainda hão de ficar por muito tempo: "Adquiriu, o país, no mundo das finanças, um crédito do qual dizer-se pode que é de primeira ordem! Seus títulos vivem em alta, etc."

E logo depois: "Cumprir os compromissos contraídos é dever, mas não é tudo. É necessário que o Estado saiba bem empregar sua fortuna e, no momento de consultar suas necessidades, deve preocupar-se melhor com as de maior utilidade. Nesses pontos de vista o orçamento do Brasil é combinado com uma sagacidade que faz honra ao governo que o prepara e às Câmaras que o discutem e o votam".

Temos, entretanto, apenas vinte e poucos anos de uma vida autônoma! Não damos, como se vê, má conta do que somos.

E saímos de uma escola política onde os professores não foram lá de grande fama... Sempre é bom recordar o que do último governo que precedeu à nossa independência (governo do senhor dom João) escreve o grande Oliveira Lima: " Mercê de uma crítica sentimental, mais do que de um são discernimento exercido como é o critério a distância dos acontecimentos históricos analisados e, no geral, sem exame judicioso dos fatos, e menos ainda dos documentos, tem-se ultimamente criado uma certa lenda, de que foi impecável a administração brasileira no tempo de dom João VI. Descrevem-na muitos, até, como totalmente diferente da que precedeu (!) e progressiva, e moralizadora, ao ponto de servir de modelo às administrações subseqüentes. A verdade está em que - conforme temos ido verificando - o Brasil lucrou extraordinariamente com a traslação da Corte, porque adquiriu o que lhe faltava no regime colonial - desafogo para a sua população, no domínio econômico e político, e consideração por parte dos poderes públicos, de que não andasse excluída a deferência. O governo, porém, segundo já ficou igualmente notado, ao ser contada a ação trêfega de Linhares, não se limpara da mancha original..."

No primeiro volume de sua obra já havia ele escrito essas palavras profundas, numa síntese admirável do governo de El-Rei:

"A época de dom João VI estava destinada a ser na história brasileira, pelo que diz respeito à administração, uma era de muita corrupção e peculato, e, quanto aos costumes privados, uma era de muita depravação e frouxidão."

Chega o navio ao Rio de Janeiro, mas não atraca. Recebe junto a Vilegaignon a visita da Saúde e da Alfândega. Já o cercaram inúmeras embarcações pequenas. São chalanas, catraias, escaleres, canoas, botes e pontões - gente de estiva, mercadores de fruta e de animais, moços de frete, todos a gritar para bordo, enquanto os viajantes, debruçados por sobre os paus do tombadilho, gozam a barafunda pitoresca e imprevista de um colorido sem igual.

Mas, já tomamos o escaler que nos conduzirá com brevidade à terra.

- Mineiros ou Pharoux? - indaga o condutor da embarcação.

- Mineiros.


(LUIZ EDMUNDO. Recordações do Rio antigo

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