sexta-feira, 9 de outubro de 2015

François-René de Chateaubriand - Vida de Jesus Cristo



Vida de Jesus Cristo

Por François-René de Chateaubriand

APARECE JESUS CRISTO no meio dos homens, cheio de graça e verdade. Arrebatam a autoridade e doçura da sua palavra. Chega para ser o mais desgraçado dos mortais, e todos os seus prodígios são feitos em bem dos miseráveis. Os seus milagres, diz Bossuet[1] são mais bondade que poder.

Escolhe o apóligo ou a parábola, que facilmente se entalha no espírito dos povos, para recomendar os seus preceitos. Vai caminhando e ensinando através dos campos. Encontrando flores, exorta seus discípulos a confiarem na Providência, que ampara as plantas débeis e alimenta as avezinhas; encontrando os frutos da terra, ensina a avaliar o homem por suas obras. Se lhe trazem uma criança, recomenda a inocência; no meio de pastores, dá-se a si mesmo o título de Pastor das almas, e figura-se levando aos ombros o cordeiro tresmalhado[2]. 



Na primavera assenta-se na colina, e dos objetos que o rodeiam tira assunto para instruir a multidão assentada a seus pés. Do próprio espetáculo desta multidão pobre e desgraçada nascem as suas BEM-AVENTURANÇAS: Bem-aventurados os que choram! Bem-aventurados os que têm fome e sede! Os que observam e os que desprezam estes preceitos são comparados a dois homens que edificam duas casas, uma sobre rocha, outra sobre areia movediça: no entender de alguns intérpretes mostrava ele, assim falando, uma aldeiazinha florente sobre uma colina, e ao sopé desta colina as cabanas alagadas por uma inundação. Quando pede água à mulher de Samaria, afigura-lhe a sua doutrina sob a formosa imagem duma fonte de vivas águas.

Os mais violentos adversários de Jesus Cristo não ousaram jamais atacá-lo em pessoa. Celso [3], Juliano [2], Volusiano [4] confessam seus milagres, e Porfírio [5] conta que até os oráculos dos pagãos o denominavam homem ilustre por sua piedade; Tibério [6] quisera classificá-lo entre os deuses; segundo Lampridius [7], Adriano [8] erigira-lhe templos, e Alexandre Severo [9] reverenciava-o a par das imagens das santas almas, entre Orfeu e Abraão, Plínio [10] depôs ilustre testemunho sobre a inocência desses primitivos cristãos que seguiam de perto os exemplos do Redentor. Não há aí filosofia da antiguidade irrepreensível em vícios. 

Os próprios patriarcas tiveram fraquezas, só o Cristo é imaculado. É a brilhantíssima cópia desta soberana beleza que reside sobre o trono dos céus. Puro e sagrado como o tabernáculo do Senhor, respirando só amor de Deus e dos homens, infinitamente superior à glória vã do mundo, prosseguia através das dores, a grande empresa da nossa salvação, forçando os homens com a superioridade das suas virtudes, a abraçar-lhe a doutrina e a imitar uma vida que força-lhes admirar.

Era amável, franco e terno o caráter, e ilimitada a caridade de Jesus. Isto era: duas palavras, nos dá a conhecer o Apóstolo: “la ele praticando o bem.” 

Resignação na vontade de Deus luz em todos os momentos da sua vida. Amava e conhecia a amizade; e Lázaro, a quem tirou do túmulo era amigo seu: o maior milagre fê-lo pelo maior sentimento da vida. Foi modelo em amor da pátria: “Jerusalém, Jerusalém!” exclamava ele, meditando na condenação que ameaçava esta cidade criminosa: “eu quis ajuntar teus filhos, como a galinha ajunta sob suas asas os pintainhos, mas tu não o quiseste assim.” Do topo de uma colina, lançando a vista a esta cidade condenada por seus delitos a uma destruição horrorosa, não pode conter as lágrimas: “Viu a cidade, diz o Apóstolo, e chorou”.

Não foi menos de notar a sua indulgência, quando seus discípulos lhe rogaram que fizesse baixar fogo sobre uma cidade de samaritanos que lhe negaram hospitalidade. Respondeu indignado: “Vós não sabeis o que me rogais!”

Se o filho do homem saíra do Céu com toda a sua força, pouco lhe custaria a praticar tantas virtudes e a suportar tantas penas, mas aqui salta a glória do ministério: o Cristo sentia a dor,  partia-se-lhe o coração como o do homem; nunca deu sinal de cólera senão contra a dureza e a insensibilidade d’alma. 
Frequentemente repetia: “Amai-vos uns aos outros.” Meu pai, exclamava ele sob os ferros dos verdugos, perdoai-lhes, que não sabem o que fazem.” 
Prestes a deixar os amantíssimos discípulos, se desfaz em pranto. Entre os terrores do túmulo e as angústias da cruz, um suor de sangue lhe desliza pelas faces divinas. Queixa-se de que seu Pai o abandonou. E ao apresentar-lhe o Anjo o cálice, diz: “Oh, meu Pai! Faze que êste cálice passe longe de mim. Contudo, se o devo beber, a tua vontade se faça.” 

Então saiu da sua boca este dizer, onde se respira a sublimidade da dor: “Minha alma está triste até à morte.” 

Ah! se a mais pura moral, o mais terno coração, se uma vida passada a combater o erro e a consolar o mal dos homens são os atributos da divindade, quem pode negar a de Jesus Cristo?! Modelo de todas as virtudes, a amizade o vê adormecido no seio de S. João ou legando sua mãe a seu discípulo. 

A caridade o admira no julgamento da mulher adúltera: em tudo a piedade o acha abençoando os prantos do infeliz. Sua candura e inocência manifestam-se no amor às crianças: a força de sua alma brilha no meio dos tormentos da cruz e o seu derradeiro suspiro é um suspiro de misericórdia!

As ideias grandes e generosas dilatam o horizonte da pátria.

[1] Bossuet — insigne escritor e orador sacro da França.
[2] tesmalhado — sin. perdido.
[3] Celso — escritor latino.
[4] Volusiano — imperador romano (251-253 dep. de Cristo).
[5] Porfírio — escritor latino.
[6] Tibério — imperador romano (14-36 dep. de Cristo).
[7] Lampridius — biógrafo latino.
[8] Adriano — 8) Alexandre Severo — imperadores romanos.
[9] Plínio — epistológrafo e panegirista latino.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses , por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.

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